quarta-feira, 23 de julho de 2014

O preço da carne bovina brasileira, artigo de Bruno Versiani.
Ao viajar de carro ou ônibus pelas intermináveis rodovias esburacadas da região Norte do país, especialmente Mato Grosso e Pará, a cena invariavelmente se repete: planícies a perder de vista de velhos tocos carbonizados no meio de extensas pastagens salpicadas com o inconfundível branco do gado nelore. Planícies que há poucas décadas ou anos atrás cobriam uma verde e exuberante floresta. Ao se adentrar nas pequenas e médias cidades, há também um padrão que quase invariavelmente se repete : via de regra a “elite” local circula com grandes camionetes e segue o padrão característico de vestuário, com calça, botina e chapéu de boiadeiro. Lojas de insumos agrícolas e veterinários se multiplicam pelas ruas, e sempre alguma variante de música sertaneja ecoa pela cidade. Do simples assentado do INCRA ao “magnata do boi”, o sonho de se alcançar riqueza passa quase que invariavelmente pela pecuária extensiva.

Há poucas semanas atrás vi pela TV Câmara um parlamentar tecendo amplas laudatórias ao fato de o Brasil ser um grande exportador de carne bovina, e ao seu preço acessível à amplas camadas da população. Esse senhor talvez não seja apenas nada além da “ponta do iceberg”, um parlamentar erigido com amplo dinheiro advindo muito provavelmente da poderosa agroindústria brasileira. O poder e a articulação da bancada ruralista assustou até mesmo nossa Presidente na então querela que girou ao redor do código florestal em 2012.

Quando nasci, em meados da década de 70, menos de 1% da Amazônia brasileira estava destruída e a imensa parcela do Cerrado ainda estava intocada. A carne bovina tinha um preço relativamente muito mais alto que nos dias atuais – e mesmo minha família de classe média-alta não se dava ao luxo de saborear um bife com muita frequência. Hoje, o famoso “churrasco de domingo” tornou-se quase um símbolo da cultura nacional, um verdadeiro ritual em que se confraternizam os amigos e parentes em torno das divergências da política e do futebol. O preço a pagar: em que pesem as divergências estatísticas, cerca de um quarto da Amazônia foi carbonizada, uma área que se aproxima da estrondosa cifra de um milhão de quilômetros quadrados (sendo que há estudos que falam em mais de 35% de floresta já modificada se levarmos em conta o fogo e a extração seletiva) e algo como metade do Cerrado já não existe. Foi esse o legado em menos de meio século.

A pecuária extensiva é, sem sombra de dúvida, o grande motor do desmatamento e da grilagem por terras, com uma avidez incansável por imensas áreas de pastagem. O rendimento é de menos de um boi por hectare na Amazônia brasileira. O investimento inicial é relativamente baixo em comparação com outras culturas, a demanda por mão de obra é pequena, e o retorno é confiável. Isso pode parecer claro para ambientalistas e uma determinada parcela da população, mas não o é para a grande maioria. Outro dia, em uma conversa com amigos (todos de um bom nível cultural), houve perplexidade quando apontei essa problemática, como se eu estivesse apontando algo de realmente inédito. No caso da madeira, por exemplo, a associação na cabeça das pessoas é mais direta com a destruição, porém a vasta maioria ainda não percebe isso nitidamente em relação ao famoso “bife”.

Não vejo motivo de orgulho nenhum em sermos um dos maiores exportadores de carne (redundante dizer que esse modelo agro-exportador deveria ser profundamente questionado). Tampouco vejo motivo para nos empanturrarmos de carne a preço acessível. Isso só é possível pois ainda possuímos largar porções de terras agricultáveis que estão sendo defloradas de suas florestas a um ritmo alarmante. Como diria Margulis em seu célebre estudo sobre pecuária e desmatamento: será que valeu a pena trocar 50 milhões de bois por 50 milhões de hectares de floresta destruída ??

Bruno Versiani dos Anjos – Analista Ambiental e Agente de Fiscalização do IBAMA-SEDE, lotado no Centro de Sensoriamento Remoto. Mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília.

Fonte: EcoDebate

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